sábado, 23 de maio de 2009

DESVIO DE FUNÇÃO - AUTARQUIAS FEDERAIS

Luiz Garcia Neto



Contam-se hoje às centenas - senão aos milhares -- as ações de servidores das autarquias federais, notadamente do inss ou do extinto inamps, pleiteando reenquadramento e/ou diferenças salariais com base em desvio de função, que tramitam perante o judiciário trabalhista ou nas Varas Federais.

A Justiça do Trabalho vem, na maioria dos casos, limitando acertadamente sua competência à data de 31 de dezembro de 1990, uma vez que, com a entrada em vigor da Lei n° 8.112/90 em 1° de janeiro de 1991, os servidores dessas autarquias passaram ao regime único de natureza estatutária. No entanto, é majoritária sua jurisprudência, ao menos nos Tribunais Regionais, no sentido de admitir, quando suficientemente provado pelo servidor o desvio de função, a condenação da autarquia a paga de diferenças salariais por esse motivo.

Mesmo na Justiça Federal de 1° e 2° graus existe forte corrente jurisprudencial nesse sentido, a qual, embora com menor intensidade, tem sido às vezes também adotada nos Tribunais Superiores.

"Data venia" deste respeitável entendimento, corretíssimo aliás se fosse o caso de empresas privadas, quer-me parecer que, no serviço público, não coaduna-se ele com as disposições legais de direito administrativo que regem o relacionamento das autarquias com seus servidores, ainda que no período de vínculo celetista.

Parece-me que a matéria exige maiores considerações à luz das disposições legais de direito administrativo, donde submeto à apreciação dos interessados estudo por mim realizado quando, como juiz convocado como substituto na 2ª Turma do e. TRT da 12ª Região, pedi Vista Regimental no processo n° TRT/SC/RO-EV 0831/92 e, tendo restado vencido na tese de direito, requeri a juntada de justificativa de voto vencido:

Justificativa de Voto do Exmo. Juiz Luiz Garcia Neto no processo TRT/SC/RO-EV 0831/92

O reclamante foi admitido nos quadros do ex-inps no emprego público de operacional de serviços diversos na data de 27 de setembro de 1982. Era servidor "celetista", regime vigente até a promulgação da Lei n° 8.112/90, que o transformou em estatutário. Alega que a partir de certo momento, logo após a admissão, passou a exercer de fato as funções de Agente Administrativo e que deveria perceber os vencimentos previstos para estas funções. Aponta ainda que, em 1987 submeteu-se a concurso público para esta função, tendo sido aprovado mas não nomeado. Pleiteia o reenquadramento no cargo de Agente Administrativo e as diferenças de vencimentos decorrentes.

A prova produzida autoriza de fato concluir que o autor desempenhava pelo menos diversas das atribuições inerentes ao agente administrativo. A reclamada, no entanto, aponta ser autarquia federal e que, portanto, os seus servidores, mesmo enquanto celetistas, regem-se pelo Sistema de Classificação de Cargos de que trata a Lei n° 5.645/70, de maneira que só podem ser providos em categorias funcionais diversas daquelas para as quais forma contratados através de concurso de Ascensão Funcional (Dec. 85.645/81). Aduz ainda que, de fato, o autor prestou concurso público no ano de 1987 para o cargo de agente administrativo, sendo no entanto aprovado tão-só na 54ª posição, não sendo nomeado para o cargo porque o número de vagas era bem inferior a esse, tendo precedência os melhores classificados. Pré-questiona ainda, violação dos arts. 37, II e 5°, II da Constituição Federal de 1988.

1. A pretensão do reclamante fundamenta-se unicamente nas disposições da legislação do trabalho, especialmente na CLT. Entretanto, este regime puramente trabalhista somente seria admissível na vigência da Constituição Federal de 1967. Com efeito, esta no seu art. 104 determinou que: "Aplica-se a legislação trabalhista aos servidores admitidos temporariamente para obras ou contratados para funções de natureza técnica ou especializada".

Com base neste dispositivo constitucional, o Decreto-lei 200, de 25.02.67, no seu art. 96 dispôs que: "Nos termos da legislação trabalhista, poderão ser contratados especialistas para atender às exigências de trabalho técnico, em institutos, órgãos de pesquisa e outras entidades especializadas da Administração Direta ou Autárquica, segundo critérios que, para esse fim, serão estabelecidos em regulamento".

Seu art. 182 dispôs: "Nos casos dos incisos II e III, do artigo 5° (Empresa Pública e Sociedade de Economia Mista) e do inciso I do mesmo artigo (Autarquia), quando se tratar de serviços industriais, o regime de pessoal será o da Consolidação das Leis do Trabalho; nos demais casos, o regime jurídico do pessoal será fixado pelo Poder Executivo".

2. A Emenda Constitucional n° 01, de 1969, nesta parte, introduziu profundas alterações na Constituição de 1967. No seu art. 106, determinou: "O regime jurídico dos servidores admitidos em serviços de caráter temporário ou contratados para funções de natureza técnica especializada será estabelecido em Lei especial".

Seu art 109 completou as alterações já impostas pelo art. 106:

Art. 109: Lei Federal de iniciativa exclusiva do Presidente da República, respeitado o disposto no artigo 97 e seu parágrafo 1° e no parágrafo 2° do artigo 108, definirá:

I -- o regime jurídico dos servidores públicos da União, do Distrito Federal e dos Territórios;

II -- a forma e as condições de provimento dos cargos públicos; e

III -- as condições para aquisição da estabilidade.

3. A partir de 1969, a Constituição, no art. 106, refere "Lei especial", a contrário da Constituição de 1967 que, no art. 104, mandava aplicar a "legislação trabalhista". Por outro lado, conforme art. 109, respeitada a exigência de concurso público para admissão (art. 97 e par. 1°, art. 108, § 2°), lei de iniciativa do Presidente da República é que estabeleceria o regime jurídico dos servidores públicos federais, nada impedindo que regimes diversos fossem estabelecidos, pois o regime único somente é exigência da Constituição de 1988, art. 39. De conformidade com essas disposições constitucionais, lei especial poderia determinar regime estatutário para parte dos servidores e outro regime totalmente diferenciado para os demais. Esta lei especial poderia adotar, total ou parcialmente, o regime da legislação do trabalho; poderia rejeitar totalmente este regime trabalhista e criar regime diferenciado; poderia adotar em parte a legislação do trabalho e estabelecer regramento complementar modificando-a e acrescentando preceitos de ordem administrativa, de direito administrativo. Lei que isso estabelecesse cumpriria plenamente com os preceitos constitucionais dos arts. 106 e 109 supra transcritos.

4. O Decreto-lei 200, de 1967 estabelecera, ao lado do regime estatutário, o regime da legislação do trabalho e, já em 1966, a Lei n° 5.117, de 17.09.66 determinara que, sob pena de nulidade, nenhuma nomeação ou admissão de servidores e empregados do Serviço Público, em Órgãos autônomos e nas Autarquias, se efetivaria sem concurso. Esta legislação coadunava-se com os novos preceitos constitucionais e continua em vigor. O regime da legislação trabalhista, com a exigência de concurso inicial, continuou vigorando mesmo após a promulgação da Emenda Constitucional de 1969.

5. Em 1970, a Lei n° 5.645/70, de 10.12.70 estabeleceu novo Sistema de Classificação de Cargos do Serviço Civil da União e das Autarquias Federais e, no seu art. 6°, determinou que a ascensão e a progressão funcional obedecerão a critérios seletivos a serem estabelecidos em regulamento. O Decreto regulamentador, n° 70.320 de 23.03.72, além de conceituar cargo, classe, para ascensão e progressão e seu art. 19 e parágrafo único determinaram:

Art. 19: Os órgãos da Administração Pública Federal direta e as autarquias federais, em que o regime jurídico do respectivo pessoal seja, por força de lei, o da legislação trabalhista, deverão observar normas iguais às estabelecidas neste decreto.

Parágrafo único: A estruturação dos Grupos, bem como a composição das Categorias Funcionais mediante a transformação de empregos e sem a alteração do regime jurídico dos ocupantes, processar-se-á por decreto de acordo com o que determina o art. 4° do Decreto-lei 900, de 29 de setembro de 1969, sendo nulos de pleno direito, acarretando a exoneração ou dispensa da autoridade que os praticar, os atos que contrariarem a presente disposição.

6. A Lei nº 6.185, de 11.12.74, após determinar no seu art. 1° que "Os servidores públicos civis da Administração Federal e Autárquica trabalhista reger-se-ão por disposições estatutárias ou pela legislação trabalhista em vigor." e no art. 2° especificar quais as atividades inerentes ao Estado como Poder Público, cujos servidores estariam sujeitos ao regime estatutário, dispôs no art. 3°:

Art. 3°: Para as atividades não compreendidas no artigo precedente só se admitirão servidores regidos pela legislação trabalhista, sem os direitos de greve e sindicalização, aplicando-lhes as normas que disciplinam o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.

Parágrafo único: Os servidores a que se refere este artigo serão admitidos para cargos integrantes do Plano de Classificação, com a correspondente remuneração.

7. O Decreto n° 80.602, de 24.10.77 regulamentou a aplicação dos institutos da Progressão Funcional e do Aumento por Mérito em 54 artigos detalhando requisitos a serem preenchidos pelo servidor, processo de aferição de mérito. De conformidade com seu art. 21, sujeitam-se às disposições do Decreto todos os servidores, "estatutários e regidos pela legislação trabalhista".

O Decreto n° 81.315, de 08.02.78 regulamentou a aplicação do instituto da Ascensão Funcional, abrangendo, segundo art. 9°, par. 2°, funcionários e "empregados regidos pela legislação trabalhista", o mesmo determinando o Decreto n° 85.645, de 20.01.81, que alterou aquele, no art. 11, par. 4° e 5°.

8. O Decreto-lei 2.280, de 16.12.85 criou empregos no Plano de Classificação de Cargos instituído pela Lei n° 5.645/70, "necessários à classificação dos atuais servidores contratados pelos órgãos da Administração Federal Direta ou autarquias federais para desempenho de atividades de caráter permanente e retribuídos com recursos de pessoal". Seus artigos 2° e 3°, respectivamente, prevêem a classificação mediante processo seletivo interno e sua localização na primeira referência da classe inicial da categoria profissional, "cujas atribuições guardem correlação com as dos empregos ocupados", prevendo o art. 4° a hipótese das atribuições inerentes aos empregos não estarem previstos no Plano de Classificação de Cargos de que trata a Lei nº 5.645/70.

9. O Sistema de Carreira do Serviço Civil da União e dos Territórios Federais estabelecido pelo Decreto-lei nº 2.403, de 21.12.87, regulamenta as "Carreiras", arts. 6°, 7° e 8°, o Ingresso na Carreira mediante concurso e estágio probatório -- arts. 10 a 13, o Desenvolvimento na Carreira, mediante Promoção e Progressão mediante processo de avaliação. Seus artigos 32, 33 e 34 regulamentam a situação dos servidores de autarquias, com regime jurídico próprio enquadrados nos "atuais" planos de classificação e retribuição de cargos e empregos.

10. Toda legislação citada está em perfeita consonância com as disposições constitucionais da Emenda Constitucional 01/69 que prevê legislação especial (art. 106) e admite a diversidade de regimes jurídicos para os servidores federais da Administração Direta e Indireta (art. 109). Demonstra que a União, para os servidores não estatutários, adotou um regime jurídico misto, parte da legislação trabalhista e parte da legislação administrativa comum a estatutários e empregados. Tanto a legislação do trabalho como a legislação administrativa constituem legislação com a mesma validade constitucional; uma não prepondera sobre a outra; ambas são aplicáveis aos servidores não estatutários.

11. Em decorrência da mesma legislação: a) os servidores regidos pela legislação trabalhista da Administração Federal Direta e Indireta são admitidos mediante concurso e nomeados para cargo ou função determinada na classe inicial de uma carreira determinada; b) a progressão e ascensão funcionais -- a promoção -- somente ocorrem preenchidos os requisitos e cumpridas as formalidades previstas em lei e regulamentos, mediante ato formal -- Decreto ou Portaria -- da autoridade competente; c) a contrário do previsto na legislação trabalhista para empresas e entidades privadas, não é admissível no Serviço Público o contrato tácito, ou "contrato realidade" de trabalho, a equiparação salarial ou desvio de funções que implique alteração da classificação, descumpridas as formalidades estipuladas taxativamente nos Sistemas de Classificação de Cargos e Funções e sua Retribuição e legislação correlata; d) ao Poder Judiciário não cabe apreciar processos de isonomia e determinar aumentos de vencimentos desses servidores.

12. Face aos precedentes legislativos citados, aplica-se também aos servidores não estatutários a Súmula 339 do Supremo Tribunal Federal: "Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia".

Para bem compreender o alcance desta súmula e a orientação traçada pelo e. STF ao adotá-la, transcreve-se extratos do Acórdão proferido pela Excelsa Côrte no Recurso Extraordinário 79.053, revista trimestral de jurisprudência, v. 71, p. 886-890:

EMENTA. Funcionários públicos. Servidores admitidos como escriturários. Desempenho de serviços contábeis. Pretensão a vencimentos de cargos de contador. Improcedência.

O direito do funcionário restringe-se aos vencimentos próprios do cargo em que se encontra legalmente investido, sem que o desempenho, de fato, de um conjunto de atribuições diversas das pertinentes ao seu cargo base por si só para lhe conferir direito aos vencimentos correspondentes.

Extratos:

Se o Judiciário despreza os vencimentos do cargo e passa a estipular retribuição outra ao funcionário (pelo exercício "de fato" de funções sem regular "designação", consoante a lei, para exercê-las ou para nelas substituir, já aí se tem questão de direito federal, cuja vigência se nega, e dissídio com a Súmula 339.

Examino, com estas considerações, o presente extraordinário.

No caso dos autos, os autores foram admitidos como "escriturários". Tem direito aos vencimentos de escriturários somente, ainda que, "de fato", exerçam serviços próprios de contadores.

Só teriam direito a vencimentos de contadores se, "por ato regular de autoridade competente", tivessem sido nomeados ou designados substitutos em cargos de contadores, atribuindo-lhes a lei a vantagem, ou se houvessem sido admitidos para tais cargos. Se foram admitidos na qualidade de escriturários, mandar pagar-lhes vencimentos de contador importa, como observou o eminente Ministro Bilac Pinto, em criar por decisão judicial tais cargos, ou funções; em fixar-lhes a retribuição; e a provê-las com os demandantes (RTJ, 68/424) (Grifo nosso).

13. No mesmo sentido, só para citar alguns, os Acórdãos do stf citados no mesmo Acórdão: RE 73878; RMS 17265; RE 76162; RE 72519; 74480; 74193; 74733; 71492; 74677; 73358; 76162. Acórdão RE 82520, revista de direito administrativo. v. 128, p. 218-220 e acórdãos nele referidos: RE 74677; ERE 69846; RE 72519; RE 71055.

14. A jurisprudência e Súmula citados referem-se a funcionários. Mas, conforme legislação citada e parcialmente transcrita, aos servidores celetistas da Administração Federal Direta e Autárquica é aplicável toda a legislação sobre admissão, nomeação cargos e funções, carreira, promoção, progressão, ascensão, anteriormente peculiar ao estatutário. Sob estes aspectos, não há diferenciação ou tratamento diferenciado entre estatutários e servidores regidos pela legislação do trabalho.

15. No caso do reclamante, sendo o reclamado autarquia regida pela legislação em causa, somente têm ele direito à função em que foi enquadrado no Plano de Classificação de Cargos e Funções e só poderia ter direito à alteração de funções, ascenso, progressão ou promoção, por ato regular de autoridade praticado na forma da lei, pouco importando tenha ocorrido "desvio de função". Com efeito, se no concurso público a que se submeteu sua classificação não foi das melhores, não poderia a autarquia nomeá-lo para o cargo em detrimento dos melhores classificados. Não pode o Judiciário, face à situação de fato, acolher, contra a lei, sua pretensão.

16. Assim, incidindo a legislação especial citada, a reclassificação das reclamantes em funções diversas só pode ser mantida se, comprovado o preenchimento dos requisitos e formalidades previstas pela legislação e Plano, a reclassificação não tivesse sido procedida. O desvio irregular de função em hipótese alguma, justificaria a reclassificação. Autorizar a reclassificação do autor, inexistindo vaga para tanto em razão de sua classificação insuficiente no concurso, implicaria ou em preterir candidato melhor classificado ou, pior ainda, em criar emprego público sem Lei que o autorize e sem dotação orçamentária, o que escapa à competência do poder Judiciário.

Determinar vantagens salariais sem essa reclassificação, além de ser um sofisma, atropelaria as disposições legais que fixam os vencimentos para cada classe ou função.

17. Mesmo abstraída toda legislação citada, ainda que se aplique unicamente a legislação do trabalho, improcederia a reclamação. Existindo Quadro de Carreira, só procederia a reclamação se comprovasse o reclamante que tivesse preenchido as normas e os requisitos nele previstos para reclassificação e esta não tivesse sido procedida. Situação de fato relativa a eventual desvio de função procedida à revelia do regulamento do Quadro não justificaria a promoção em prejuízo dos demais empregados. O par. 2°, do art. 461 da CLT impedem, neste caso, o pedido de isonomia salarial.

18. Determinar o reenquadramento do reclamante sem comprovação quanto a existência de vagas no cargo pretendido e sem o preenchimento de todas as exigências legais implicaria, na verdade, em criação de cargo e função não previstos legalmente (já que os previstos já tem seu ocupante remunerado), ou em preterição na promoção a funcionários que, de acordo com a lei e regulamentos internos, a esta fizessem jus.

19. Tal procedimento extrapola as atribuições constitucionais do poder judiciário, invadindo a esfera de competência legislativa e executiva.

Em decorrência, dou integral provimento ao recurso da autarquia, para julgar a ação improcedente, julgando por isso prejudicado o apelo do autor, o qual inconforma-se tão-só quanto a incompetência parcial acolhida para o período posterior à instituição do regime jurídico único.



Não pretendo, com esse simples estudo de ordem puramente legal, sem maiores pretensões doutrinárias, ter esgotado o assunto, árduo e tormentoso, que vem a constituir a problemática do alcance do desvio de função no serviço público. Que fique ele apenas como um convite aos doutrinadores melhor qualificados para desenvolvê-lo, tendo em conta a estrutura legal do direito administrativo brasileiro, tantas vezes esquecido em decisões que, buscando talvez a Justiça, afastam-se inteiramente do direito objetivo.

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