Fonte jornal O Estado de São Paulo
A PEC da Bengala
Mauro Chaves
Há uma discussão muito interessante, no meio jurídico e acadêmico brasileiro, em torno da chamada PEC da Bengala. Trata-se de uma proposta de emenda constitucional (de nº 457/2005), de autoria do senador Pedro Simon (PMDB-RS), já aprovada no Senado e nas comissões técnicas da Câmara dos Deputados, destinada a elevar de 70 anos para 75 anos a idade-limite para a aposentadoria compulsória no serviço público.
Os defensores da mudança argumentam que a "expulsória" aos 70 anos foi instituída no Brasil em 1952, com a aprovação do Estatuto dos Funcionários Públicos Federais, época em que a expectativa de vida dos brasileiros era de 50 anos. Hoje, segundo dados do IBGE, essa expectativa passou para 81 anos. Se fosse para seguir a lógica literal desse argumento, se há 57 anos a aposentadoria compulsória devia se dar quando o servidor público tivesse 20 anos a mais do que a expectativa de vida brasileira, hoje deveria ser obrigado a aposentar-se só aos 101 anos de idade (ou seja, 81 mais 20). Mas os defensores bengaleiros contentam-se com apenas mais cinco anos, o que é bastante razoável, considerando o extraordinário aumento da longevidade que a ciência, a medicina e a farmacologia têm propiciado aos seres humanos nas últimas décadas.
De boa-fé, não há como negar a grande diferença de idade dos que eram considerados "velhos" há 50 anos e dos que assim são considerados hoje em dia. Não cometa a bobagem (já cometi) de presentear uma jovem senhora, que comemora o aniversário de 30 anos, com o famoso livro de Balzac A Mulher de Trinta Anos. Pois se ler o livro ela ficará furiosa, achando que você a considera uma velhota, já com filhos e netos criadíssimos e os desejos reduzidos à expectativa naftalínica da missão cumprida - como os que tinham as provectas balzaquianas de nossa infância, semelhantes às descritas pelo escritor francês.
A polêmica em torno da PEC da Bengala deveria suscitar discussões a respeito do alargamento do tempo de vida das pessoas, da extensão da duração da nossa capacidade intelectual, da melhor utilização do acúmulo de conhecimento e do refinamento da sabedoria, trazido pelo avanço da maturidade. Poderia também referir-se à reverência que existe em sociedades de culturas milenares e evoluídas ao pensamento robustecido pela experiência dos mais idosos. E, certamente, poderia trazer à baila questões previdenciárias fundamentais, tais como a da injustiça de fazer as próximas gerações arcarem com todo o pesado custo do aumento da longevidade das atuais. A questão, no entanto, resvalou para uma briga de interesses por posições no Poder, sobretudo nos tribunais superiores - uns querendo mais tempo para ficar e outros, maior rodízio para entrar.
O argumento principal das associações e entidades de classe que se opõem à extensão da idade-limite da "expulsória" - como as de magistrados, de procuradores e de advogados, dizendo respeito ao preenchimento de vagas nos tribunais superiores - refere-se à "necessidade de renovação, de oxigenação" da função jurisdicional, como se a capacidade de se abrir a novos horizontes do conhecimento, de acompanhar a evolução da sociedade e de entender as leis que regulam ou institucionalizam essa evolução estivesse na razão inversa da idade dos magistrados. Tal visão não passa de um preconceito etário - venha de jovens ou de velhos -, pois a idade jamais foi fator de estagnação de discernimento e nem sempre o mais jovem é mais evoluído do que o mais velho. Tome-se o caso de nosso Supremo Tribunal Federal. Se fosse para avaliar, por exemplo, quem tem perfil mais conservador, entre a ministra Ellen Gracie e o ministro Eros Grau, qual dos dois se escolheria?
Ninguém negará que a Suprema Corte dos Estados Unidos é uma instituição com excepcional capacidade renovadora e de entendimento da evolução de uma sociedade, razão pela qual se tornou o principal sustentáculo de uma democracia cada vez mais sólida, contínua, sem golpes ou ditaduras, apesar de ter passado por uma guerra civil sangrenta e por muitas outras guerras pelo mundo afora, nos últimos 222 anos. Atualmente, pontificam na Suprema Corte e interpretam os mais elevados interesses da sociedade norte-americana, entre outros idosos, os juízes John Paul Stevens, de 89 anos, Ruth Bader Ginsburg, de 76 anos, Antonin Scalia, de 73 anos, e Anthony Kennedy, de 72 anos. Em anos recentes, aposentaram-se daquele tribunal Harry Blackmun, então com 85 anos, William Brennan, com 84 anos, Thurgood Marshall, com 83 anos, e William Rehnquist, com 80 anos. Terão eles impedido a "oxigenação" da Corte que é a guardiã suprema da democracia norte-americana?
Também se afirma que, retardando a idade-limite da "expulsória", a sociedade seria obrigada a suportar por mais tempo os malefícios causados por magistrados inadequados ou incompetentes. Mas um juiz que é ruim a longo prazo o será a curto e a médio. Mais importante é a criação de mecanismos rigorosos de avaliação de candidatos a tribunais superiores, fazendo com que os valores do notório saber e da reputação ilibada pesem muito mais do que os do compadrio político. E em caso de irregularidades ou de quebra de decoro o melhor remédio será mesmo o criterioso impeachment - sem esperar por aniversário algum.
Na vida acadêmica, ao obrigar a aposentadoria compulsória de professores titulares, no auge de seu trabalho científico e em pleno esforço de formação de seus orientandos, a "expulsória" vigente, dos 70 anos, constitui um tremendo desperdício de inteligência - podendo-se dizer o mesmo em relação a vários outros setores. Então, não será extremamente bem-vinda a PEC da Bengala?
Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e pintor. E-mail: mauro.chaves@attglobal.net
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