Fonte: Jornal O Estado de São Paulo
José Roberto Batochio
No quarto volume de sua História do Supremo Tribunal Federal, Leda Boechat Rodrigues cita um dos muitos conceitos enunciados pelo notável juiz americano Oliver Wendell Holmes (1841-1935): "Aquele que sabe somente o Direito nem o Direito sabe." A historiadora adverte a seguir que, "como último intérprete do Direito, o ministro do Supremo Tribunal Federal, um dos membros da inteligência nacional, precisa vislumbrar, além do elemento jurídico, os elementos políticos e sociológicos, que o tornam verdadeiramente grande e criativo". Talvez - apenas para se conceder o benefício da dúvida - os atuais ministros da nossa Suprema Corte estejam, no momento, sendo vítimas dessa singularidade hermenêutica. Não há, entre nós, registro na História recente de uma ofensiva tão corrosiva quanto a que se origina nas ruas contra decisões por eles tomadas com base no Direito e em outros elementos essenciais que estratificam observância da equidade e dos princípios da verdadeira justiça. Como no tempo das Ordenações do Reino, juízes que apenas aplicam e fazem observar as leis vigentes são "arcabuzados" e agora, como se vê de forma recorrente na internet, abatidos por bacamartes eletrônicos.
Decisões colegiadas, irrepreensíveis, do Supremo Tribunal Federal (STF), ou monocráticas, de qualquer de seus membros, sobretudo em casos de liminares em habeas corpus, têm sido publicamente censuradas como se do julgador somente se admitissem condenações. As sentenças condenatórias parecem já estar lavradas nas ruas e ao magistrado (ao menos ao mais intimidável ou cortejador da popularidade) restaria chancelá-las. Em boa hora o presidente Gilmar Mendes lembrou, em audiência pública no Senado, que a Justiça tem outras referências culturais e axiológicas. Não se julga pela opinião pública, diz Mendes, conforme se lê de matéria publicada neste jornal em 4/6. O que pareceria vitupério de advogado soou como uma encíclica jurídica. "Dependendo da história que se conta, a opinião pública aplaude até linchamento. Julgamento se faz é com contraditório", disse o presidente do STF. Um dos seus alvos foi o abuso escancarado da decretação de prisões temporárias ou preventivas, tão ao gosto das ruas, que deixa de ser medida extrema, acautelatória, excepcionalmente preconizada para casos específicos e inexoráveis, mas reivindicada à larga como pena antecipada. "Clamor de opinião pública não justifica prisão preventiva", com acerto afirmou Sua Excelência, não por diletantismo forense, mas em estrita obediência ao que mandam a Constituição da República e o artigo 312 do Código de Processo Penal.
Assim como "a praça é do povo", nos condoreiros versos de Castro Alves, a rua é das massas, sua tribuna política, seu palco de cidadania, sua arena de partidarismos, seu tablado de engajamentos. É um truísmo dizer que a História se faz nas ruas, chamando-se como exemplo único e definitivo a tomada da Bastilha, que deu início à gloriosa Revolução Francesa. A rua também costuma ser, no entanto, desde tempos imemoriais, assembleia açodada, prenhe de paixões e falta de serenidade, tribunal improvisado, cadafalso precipitado, patíbulo sumário, estuário caudaloso da ira sanguínea das massas - termo hoje substituído pela plástica expressão "opinião pública", que na maioria das vezes não tem caráter totalizante e sintético dos valores de uma dada sociedade, mas reflete os interesses de um grupo, quem sabe um lobby, conceitual ou ideativo. Com a sabedoria habitual, o maior de nossos advogados e tribunos, Rui Barbosa, vergastou "a execrável justiça das ruas". O julgamento mais famoso da História diz bem dessa justiça colérica e volúvel, quando, conforme os Evangelhos, Pôncio Pilatos cotejou Jesus a Barrabás e perguntou à multidão: "Qual dos dois quereis que vos solte?" Eles responderam: "Barrabás!" Pilatos disse-lhes: "Que hei de fazer, então, de Jesus chamado Cristo?" Todos responderam: "Seja crucificado!"
A "jurisprudência" das ruas gera um preocupante menoscabo ao império da lei e à supremacia do Direito. Juízes de primeira instância, inseguros, intimidados ou engajados, acolhem-na. O pano de fundo desse ativismo judicial transfigurado é a difícil - para o Direito - fase da vida nacional, em que pululam prisões arbitrárias, investigações que não passam de interceptações telefônicas, "operações" policiais transmitidas ao vivo, algemas tilintando diante das câmeras, policiais com vocação para o show biz, autoridades que se entendem um Moisés conduzindo seu povo à Terra Prometida. Deus nos livre da autoridade messiânica, guerreira da guerra santa, que entroniza na ponta da lança o estandarte de seu ego justiceiro!
Os homens de Estado, os empresários bem-sucedidos, aqueles que fizeram do sucesso uma "ofensa pessoal" aos demais, na expressão de Tom Jobim, são julgados pelos cânones da desigualdade social e não raro pelos preconceitos de classe.
Como advogado que milita no Supremo, ganhando e perdendo causas, longe de mim a crença da infalibilidade de seus ministros, nestes tempos em que nem os católicos perseveram na infalibilidade do papa. Mas insisto em notar que não se inscrevem na pauta atual do tribunal decisões constrangedoras como algumas do passado. Não saiu do Supremo dos nossos dias nada parecido ao golpe contra a democracia que foi a ratificação da cassação do registro do Partido Comunista nos anos 1940. Ao contrário, o Supremo de agora não se ajoelha ao Executivo na impenitente genuflexão aos poderosos que dominam a caneta das nomeações e do Orçamento. Nosso tribunal supremo tem sido um baluarte na defesa da ordem constitucional, dos postulados democráticos, aplicando com rigor o artigo 5º da Lei Maior na proteção dos direitos e garantias do cidadão, e apenas isso seria suficiente para fazer dele o que se espera de um tribunal superior: a última instância do Estado Democrático de Direito.
José Roberto Batochio, advogado, foi presidente do Conselho Federal da OAB e deputado federal
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