sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Que mancada! - Fonte blog Cotidiano de um Oficial de Justiça

Que mancada!

Logo que comecei a trabalhar como Oficial de Justiça, há cinco anos, percebi que as leis não esclarecem como nós devemos realizar as ordens judiciais, qual é a maneira de fazer o trabalho, em outras palavras, o modus procedendi (gastei todo o meu latim, não sobrou nem mais uma gotinha...).

Para o amigo leitor que não é da área jurídica, isto pode parecer uma grande bobagem.

- Como assim o modo de fazer? É só ir até lá e fazer, ora bolas!

Não é tão óbvio assim, embora eu gostaria que fosse.

O dia-a-dia dos Oficiais de Justiça exige uma mistura de conhecimento teórico (o que devemos fazer) e de conhecimento prático (como devemos fazer). O primeiro deles, nós aprendemos estudando o Direito; o segundo, nós somente aprendemos vivenciando as dificuldades do cotidiano. O exercício de nossas atribuições não será possível apenas com um dos lados da moeda. Ambos são necessários. É o que tentarei demonstrar na história de hoje.

Era uma tarde de quinta-feira e eu estava no Fórum devolvendo mandados já cumpridos. Fui procurado por uma senhora que já beirava os 70 anos , a quem chamarei D. Marta (deduzi a idade, pois tinha medo de levar o guarda-chuvas na cabeça, caso perguntasse). Ela havia vindo de uma cidade de Minas Gerais e procurava o Oficial de Justiça que cumpriria uma ordem judicial de citação de seu esposo numa ação de separação com partilha de bens.

- Hein?
Eu explico: o marido de 73 anos a expulsara de casa alegando que ela o havia traído (veja só, ciúmes na terceira idade!). Mandou-a para a rua apenas com uma mala e objetos pessoais, sem dinheiro ou bens. Uma irmã a acolheu e a levou para Minas Gerais. Tudo o que o casal havia construído durante uma vida em comum ficou nas mãos do vovô ciumento. Chamarei-o de Seu Manoel.

- Meu filho, ele me mandou embora sem nada, e não me quer de volta... Mais de 40 anos de casamento... Me ajude!

Só poderia ajudá-la de uma maneira: cumprindo a ordem do Juiz, infomando ao marido sobre a existência da ação de separação e avisando-o do prazo para se defender (nós chamamos isto de citação). Pelo menos assim ela receberia sua parte no patrimônio. Os anos de convívio e relacionamento... estes pareciam ter se apagado da memória do vovô. Que pena... Bem, o que não tem remédio, remediado está. Fui para o endereço indicado no mandado, onde antigamente residia um casal feliz. Não me saía da cabeça um detalhe dito por D. Marta:

- Manoel vai dificultar o seu trabalho, pode até dizer que não mora mais ali, que é outra pessoa... mas tem um jeito de você identificá-lo... ele é da sua altura, moreno, grisalho e tem um defeito de nascença... ele manca da perna direita.

Manca de uma perna... manca pouco ou manca muito? Que mancada ficar pensando nisto. Tenho que me concentrar... vou chegar lá pra ver!

Casa simples, mas muito bem cuidada... jardim com flores, janelas abertas... Alto lá, cara pálida! Janelas abertas? Ou tem gente em casa ou o vovô não tem medo de assalto! Mas quem não tem medo de assalto hoje em dia?!

Toquei a campanhia, mas ninguém apareceu... Será que ele estava no banheiro? Necessidades fisiológicas em primeiro lugar, não é mesmo? Consigo compreender... tem certas coisas que não podem ficar para depois. Dei mais algum tempo, talvez uns dois minutos, e toquei novamente a campainha... Silêncio total... até os passarinhos pararam de cantar. Disse para mim mesmo:

- É... só me restam os vizinhos.

Perguntando na casa ao lado, um sujeito afirmou com segurança que o Seu Manoel estava em casa, pois o tinha visto na porta havia poucos minutos. Conclui, então, que Seu Manoel já esperava ser procurado pela Justiça, motivo pelo qual qualquer pessoa estranha que se aproximasse de sua residência não seria atendida. Mas eu tinha uma carta na manga: D. Marta havia informado o telefone de sua casa...

Do lado de fora, telefonei para Seu Manoel: trin, trin, trin... Dali alguns segundos, surpresa:

- Alô?

Ops... será que ele saiu do banheiro?

- Boa tarde... é da casa de Seu Manoel?

- É... é sim, mas ele não está... ele... ele viajou...

Ignorei a resposta.

- Seu Manoel, eu estou no portão da sua casa... venha até aqui para conversarmos...

E ele foi até o portão, trazendo consigo sua inseparável marca de nascença.

- Ah, o senhor não é o Seu Manoel?

- Não, sou irmão dele. Ele está viajando...

- Que pena... eu trabalho no Fórum de Guarapari, sou Oficial de Justiça e estou trazendo um documento para ele.

Ele estendeu a mão:

- Posso ver?

- Infelizmente, não... é segredo de justiça.

Nesta hora ele falou com hostilidade:

- É da separação daquela mulher, né? Não vou assinar nada... Eu não vou receber papel nenhum... Ela me traiu e eu a mandei embora.

- Seu Manoel, vou dizer ao senhor o motivo da minha visita... e expliquei a ele tudo o que os documentos diziam. No final, esclareci: o senhor não é obrigado a assinar o mandado, mas isto não prejudicará a citação... o senhor está sendo citado da mesma maneira. Em relação aos documentos, é importante que o senhor os leve para o seu advogado... ele vai precisar para...

Antes mesmo de completar a frase, ele puxou os documentos da minha mão e os jogou na rua. Virou as costas e entrou em casa. O que posso fazer? Nada... nem mesmo me chatear... afinal, agindo desta maneira ele causava dificuldades apenas para ele mesmo.

Nunca mais soube dele ou de D. Marta, mas a cena de Seu Manoel mancando não saiu da minha mente... Se tivesse um defeito na mão, poderia tê-la guardado no bolso, mas como fingir não mancar? Mancando com a outra perna?

Um abraço,

Fabiano.

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