terça-feira, 21 de setembro de 2010
Decisão judicial polêmica: Juiz do TJ-MG radicaliza ao criticar a Lei Maria da Penha e é repreendido por Desembargadora - Fonte TJMG
Número do processo: 1.0672.07.249036-6/001(1) Númeração Única: 2490366-29.2007.8.13.0672
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Relator: MÁRCIA MILANEZ
Relator do Acórdão: MÁRCIA MILANEZ
Data do Julgamento: 20/05/2008
Data da Publicação: 10/06/2008
Inteiro Teor:
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - POSTULAÇÃO DE MEDIDAS PROTETIVAS COM BASE NA LEI 'MARIA DA PENHA' - DIPLOMA LEGAL CONSIDERADO INCONSTITUCIONAL NO JUÍZO 'A QUO' - VÍCIO INOCORRENTE - LEI Nº 11.340/06 QUE TROUXE A BASE NORMATIVA DE UMA 'AÇÃO AFIRMATIVA', COMO FORMA DE REDUZIR UM DESEQUILÍBRIO HISTÓRICO ENTRE HOMEM E MULHER NAS RELAÇÕES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - INEXISTÊNCIA DE OFENDA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE DOS SEXOS - MEDIDAS PROTETIVAS A SEREM ANALISADAS PELA INSTÂNCIA DE ORIGEM - RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.
APELAÇÃO CRIMINAL N° 1.0672.07.249036-6/001 - COMARCA DE SETE LAGOAS - APELANTE(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS - APELADO(A)(S): DÉLCIO DE FREITAS COSTA - RELATORA: EXMª. SRª. DESª. MÁRCIA MILANEZ
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 1ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, EM DAR PROVIMENTO PARCIAL.
Belo Horizonte, 20 de maio de 2008.
DESª. MÁRCIA MILANEZ - Relatora
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
A SRª. DESª. MÁRCIA MILANEZ:
VOTO
Trata-se de apelação interposta pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais em face da decisão de fls. 13/23, a qual considerou a inconstitucionalidade de alguns dispositivos da Lei nº 11.340/06 em sede de expediente apartado, no qual a vítima Elizete de Freitas Cardoso postulava a concessão de medidas PROTETIVAS em face de seu ex-amásio Délcio de Freitas Costa, em função da suposta prática dos delitos tipificados nos art.129, §9º e art. 147, todos do Código Penal.
Argumenta o ilustre recorrente, em síntese, que o diploma legal em tela não viola o princípio constitucional da isonomia entre homens e mulheres, tal como considerado pelo julgador monocrático, pleiteando, ao final, o deferimento das medidas requeridas pela vítima (fls. 25/30).
A combativa defesa do apelado requereu o desprovimento do recurso ministerial (fls. 40/47).
A douta Procuradoria de Justiça opinou pelo provimento do recurso. (fls. 63/72).
É o breve relatório.
Conheço da apelação interposta, eis que presentes os requisitos objetivos e subjetivos de sua admissibilidade.
Inexistentes quaisquer preliminares suscitadas ou nulidades argüíveis de ofício, passo ao exame do mérito recursal.
Consta dos autos que a vítima Elizete de Freitas Cardoso foi amasiada com o recorrido por doze anos, tendo com ele uma filha de 11 (onze) anos de idade, e que durante todo o relacionamento vem sendo aquela agredida fisicamente e ameaçada de morte por ele.
Informou ainda a vítima que "quando estava grávida do primeiro filho, já com sete meses de gravidez, foi agredida com socos, chutes em sua barriga, por parte de Delcio; Que Delcio faz uso imoderado de bebidas alcoólicas e é usuário de drogas, não sabendo dizer qual droga é 'é tipo um posinho de cor branca'; Que no dia 17/03/2007, Delcio agrediu a declarante dando-lhe socos e chutes, causando hematomas, e ainda ameaçou a declarante, dizendo que está de posse de um canivete e que vai matá-la; QUE fazem três meses que está separada de Delcio, mas Delcio vive perturbando a vida da declarante;" (fls. 07/08).
Diante do ocorrido, a vítima solicitou providências perante a autoridade policial local, postulando ainda a concessão de diversas medidas PROTETIVAS, elencadas à fl. 06. Instaurado o respectivo expediente apartado, após o parecer do Ministério Público (fl. 11-verso), foram os autos conclusos ao magistrado a quo, que, considerando a inconstitucionalidade de alguns dispositivos da Lei nº 11.340/06, por ofensa ao princípio da isonomia entre homens e mulheres, determinou o retorno do feito à Delegacia de Polícia, para conclusão das investigações, além de consignar que as medidas pleiteadas pela vítima deveriam ser submetidas aos juízos próprios.
Antes de adentrar propriamente a questão debatida pelo recorrente no presente apelo, não posso deixar de aqui registrar algumas ponderações sobre a decisão hostilizada pelo Parquet, cuja leitura trouxe-me estupefação em várias das considerações feitas pelo magistrado a quo. Permitir-me-ei citar alguns trechos bem elucidativos de tal decisão:
"Esta 'Lei Maria da Penha - como posta ou editada - é portanto de uma heresia manifesta. Herética porque é anti-ética; herética porque fere a lógica de Deus (...). Ora! A desgraça humana começou no Éden: por causa de uma mulher - todos nós sabemos - mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem. Deus então, irado, vaticinou para ambos. E para a mulher, disse: '(...) o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará (...).' (...) dou-me o direito de ir mais longe, e em definitivo! O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é masculina! Jesus foi Homem! À própria Maria (...) Jesus ainda assim a advertiu, para que também as coisas fossem postas, cada uma em seu devido lugar: 'que tenho contigo, mulher!?'. (...) A mulher moderna - dita independente, que nem de pai para seus filhos precisa mais, a não ser dos espermatozóides - assim só o é porque se frustrou como mulher, como ser feminino. Tanto isto é verdade - respeitosamente - que aquela que encontrar o homem de sua vida, aquele que a complete por inteiro, que a satisfaça como ser e principalmente como ser sensual, esta mulher tenderá a abrir mão de tudo (ou de muito), no sentido dessa 'igualdade' que hipocritamente e demagogicamente se está a lhe conferir. Isto porque a mulher quer ser amada. Só isso. Nada mais. (...) Ora! Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas desta lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole - no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões - dependente, longe portanto de ser um homem de verdade, másculo (...). Todas estas razões históricas, filosóficas e psicossociais, ao invés de nos conduzir ao equilíbrio, ao contrário vêm culminar nesta lei absurda, que mais se assemelha a uma bomba. Aquele que ama a mentira, a dissimulação, a perfídia e a confusão, certamente está rindo à toa! Porque a vingar este conjunto normativo de regras diabólicas, a família estará em perigo (...). Não! O mundo é e deve continuar sendo masculino, ou se prevalência masculina, afinal."
Não obstante pudesse o magistrado a quo declarar incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei nº 11.340/06, limitando-se aos argumentos jurídicos para tanto, preferiu tecer uma série de considerações absolutamente pessoais nas áreas da Religião, Psicologia, História e Filosofia, das quais aparenta julgar-se profundo conhecedor (inclusive convencido de conhecer "a lógica de Deus" ou ser versado nos anseios da "mulher moderna"), afastando-se da serenidade que o exercício da função exige, nos termos do art. 35, I, da Lei Complementar Federal nº 35/76.
Outrossim, não cabem aqui maiores considerações sobre as inúmeras visões distorcidas manifestadas pelo magistrado a quo, tão pouco refutá-las, eis que escapam ao exame desta Instância Revisora. Todavia, como mulher integrante desta Corte de Justiça, não poderia deixar de consignar que a compreensão assustadoramente preconceituosa explicitada nas palavras do magistrado a quo não condiz com o que medianamente se espera de um Poder Judiciário de um Estado Democrático de Direito em pleno século XXI. Uma sentença que ficará registrada como uma mancha na histórica respeitabilidade da magistratura mineira e que, pela publicidade inerente às decisões judiciais, motivará chacotas e incredibilidade.
Feitas tais considerações, passo ao exame do recurso.
No que tange à alegação de inconstitucionalidade do novel diploma legal, por ofensa ao princípio constitucional que assegura a igualdade de tratamento entre homens e mulheres (art. 5o, I, da Constituição Federal), não obstante se trate de questão polêmica e que ainda suscitará significativa discussão doutrinária e jurisprudencial, concebo a inocorrência do vício levantado pelo magistrado a quo.
O legislador ordinário, ao confeccionar a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, nada mais fez que trazer ao ordenamento jurídico mais uma medida classificada como "ação afirmativa", na terminologia adotada por nossas Cortes Superiores, que implica a criação de uma base normativa para uma política pública que visa a correção de um desequilíbrio histórico entre determinados setores sociais, como também ocorre, por exemplo, nas medidas congêneres de separação de cotas para pessoas negras em faculdades ou de vagas especialmente destinadas a portadores de deficiência física.
Em verdade, as ações afirmativas, ao contrário de ofenderem o princípio constitucional da igualdade (in casu, da igualdade entre homens e mulheres), buscam sua implementação concreta e efetiva no âmbito das relações sociais. Neste sentido, a Lei nº 11.340/06 parte de uma premissa de cunho empírico e histórico, de constatação até mesmo estatística, qual seja, a de que, no tema da violência doméstica, as mulheres são, em franca maioria, as vítimas. E, partindo deste pressuposto, disponibiliza a elas uma série de medidas assistenciais, preventivas e PROTETIVAS, enquanto trata com maior severidade o agressor.
Portanto, a "Lei Maria da Penha" privilegia a acepção aristotélica do princípio da isonomia, no sentido de que situações pragmaticamente desiguais devem ser tratadas de forma desigual, justamente como forma de se buscar o equilíbrio visado pela norma constitucional consagradora da igualdade entre homens e mulheres. Neste sentido, não percebo a inconstitucionalidade suscitada na decisão hostilizada, pelo que a reformo para afastar o vício argüido pelo magistrado a quo.
Neste ínterim, destaco relevante precedente desta Corte, julgado à unanimidade pela Colenda Turma Julgadora, em feito da Relatoria do Eminente Desembargador Reynaldo Ximenes Carneiro, em expediente oriundo da mesma Comarca de Sete Lagoas. Vejamos:
"O il. Juiz desenvolve tese preconceituosa e despropositada em face do diploma legal inovador, apodando de inconstitucionais os dispositivos que tratam da essência da relação que se quis valorizar, ou seja, a relação de harmonia com a correção do desequilíbrio decorrente da formação machista da sociedade brasileira, situação que se encontra presente não só nos burgos pobres, sem acesso ao desenvolvimento, mas também nas metrópoles, sobretudo naquelas que mantêm a mulher como doméstica, submissa ao marido.
Não se sabe a razão da aversão do magistrado à conquista definitiva do equilíbrio entre os hoje desiguais, mas qualquer que seja o motivo, certamente não haverá de comprometer a sua jurisdição criminal, negando-se a aplicar a Lei n. 11.340/2006, que tem sido vista como norma inovadora.
Com efeito, os jurídicos e doutos fundamentos do arrazoado apresentado pelo culto Promotor de Justiça o Dr. Eduardo Francisco Lovato Bianco, são eloqüente demonstração de que a norma atende o art. 226, § 8º, da CF/88, ao dispor que o Estado assegurará a assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram, sem apresentar tratamento diferenciado entre homem e mulher, mas, na mesma norma, garante que o Estado deve 'criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações'. Firma o seu convencimento de que essa disposição demonstra que o constituinte reconheceu existente a violência no âmbito das relações familiares, a recomendar a proteção à mulher, como se deu em outras oportunidades, com o igual objetivo de resgatar em pontos específicos, a isonomia entre os sexos, porque a mulher sempre foi discriminada, motivo a não se falar em ofensa ao princípio de isonomia, que, na verdade, passou a existir com a lei, ao corrigir a desigualdade." (TJMG - Processo nº 1.0672.07.240499-5/001 - Data do Julgamento: 16/08/2007 - Data da Publicação: 29/08/2007).
Todavia, não se afigura oportuno, no presente momento processual, o exame da pertinência das medidas PROTETIVAS postuladas pela vítima Marize Helena de Assis Silva, eis que as mesmas não foram apreciadas no Juízo a quo, sob pena de supressão de instância e afastamento da garantia do duplo grau de jurisdição.
Ante o exposto, em consonância com o parecer da douta Procuradoria de Justiça, CONHEÇO DO RECURSO E, NO MÉRITO, DOU-LHE PARCIAL PROVIMENTO, para afastar o vício de inconstitucionalidade suscitado na decisão ora hostilizada, oportunizando ao magistrado a quo o exame das medidas PROTETIVAS solicitadas pela suposta vítima, nos termos supradelineados.
Custas ex lege.
Votaram de acordo com o(a) Relator(a) os Desembargador(es): EDUARDO BRUM e JUDIMAR BIBER.
SÚMULA : DERAM PROVIMENTO PARCIAL.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0672.07.249036-6/001
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