sábado, 7 de agosto de 2010

PEQUENA TRAGÉDIA BRASILEIRA

PEQUENA TRAGÉDIA BRASILEIRA

Chegam os dois oficiais de justiça com o mandado judicial. As viaturas da PM também são duas, cada qual com três policiais; e outros dois de motocicleta: o aparato de segurança. Um caminhão-baú (que não é o da felicidade) prenuncia mudança. As máquinas de terraplanagem viriam mais tarde.

Param na frente do lote, sob os olhares curiosos e apreensivos dos moradores e vizinhos. Um homem negro, sem camisa, de bermuda e sandálias de borracha, vai recebê-los. Conversa, gesticula, abaixa a cabeça e volta para o interior da casa.
“Daqui só saio morto!” – A frase dita aos visitantes, entre dentes. (“Desafia o nosso peito a própria morte...”)

O fato ocorre na periferia do Distrito Federal, na planejada Capital do País, símbolo arquitetônico da modernidade. A menos de vinte quilômetros do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal – a inexpugnável Praça dos Três Poderes –, de linhas genialmente traçadas por Oscar Niemeyer. (“És belo, és forte, impávido colosso...”) E a menos de dez quilômetros das mansões midiáticas às margens do Lago Paranoá, onde se registra o maior Índice de Desenvolvimento Humano do país, que figura nas planilhas de estatísticas dos cientistas sociais tão somente como IDH. (“Se o penhor dessa igualdade conseguimos conquistar com braço forte...”)

São Sebastião é o nome da cidade-satélite que se formou à margem do aclamado plano urbanístico de Lúcio Costa e por força de invasões a terras desocupadas, públicas ou não. Assim como tantas outras da chamada Região do Entorno, inchou-se de habitantes e votos, com os milhares de brasileiros esperançosos atraídos – e traídos – por políticas eleitoreiras de doações de lotes, mas não de condições mínimas de sobrevivência.

Reintegração de posse: o mandado judicial.

No terreno de cento e cinquenta metros quadrados, duas pequenas casas (se é que se podem assim denominar as precárias construções), geminadas. Uma com dois cômodos mais um banheiro; a outra com um compartimento a mais. Sem reboco, com telhado de fibrocimento e só no contrapiso. Na primeira mora um casal – um negro e uma morena – e seus três filhos, de dois, oito e onze anos. Na segunda, outro casal – homem e mulher brancos – e os quatro filhos, de dois, sete, nove e vinte e dois anos. O rapaz é deficiente mental: passa a maior parte do tempo deitado, os movimentos são confusos e não articula sons inteligíveis. Há ainda uma cadela sem nome, que nenhuma das famílias assume como sua.

As duas mulheres trabalham como diaristas – uma delas, a morena, grávida de cinco meses. Os dois homens fazem bicos como serventes de pedreiro – um deles, o negro, tem passagem pela polícia. Pela escola, a passagem dos adultos não chega a quatro anos. Este, aliás, o tempo em que vivem no lote antes vazio (mas cheio de mato), tornado minimamente habitável com esforço conjunto das duas famílias e ajuda dos vizinhos, solidários quanto às condições de vida e ao modo de ocupação da terra.

A autora da ação, que provou em juízo ter recebido do governo distrital os direitos sobre o lote: uma senhora de meia-idade, moradora no Guará, cidade-satélite um pouco mais “classe média”. Com os direitos sobre o terreno há mais de sete anos, só agora pretende construir nele uma casa, “pra minha filha, que vai se casar”. Ela e outro dos filhos, um rapaz robusto, com mais de um metro e oitenta de altura, acompanham o motorista do caminhão.

O cenário está posto. Os atores, a postos.

“Daqui só saio morto!” – A frase fica suspensa, pairando sobre todos. (“De um povo heroico, o brado retumbante...”) Mistura-se à poeira avermelhada que o vento levanta das ruas esburacadas, desde sempre despidas da asfáltica roupa de gala. Tão clichê quanto inútil. Suspiro natimorto da macheza nordestina já domesticada em terras estranhas, ainda que na “pátria amada, idolatrada, salve! Salve!”.

“Ordem judicial não se discute; cumpre-se!” – A contrapartida é incisiva, seca. Como seco é o clima do Planalto Central, que racha a pele e faz sangrar as narinas mais sensíveis. Seca, como secas são as vidas gracilianas que se perpetuam, errantes, em seu desfuturo, comendo o pó que o diabo soprou.

E a ordem judicial não deixa margem a dúvidas: “Cumpra-se integralmente”.
(“Mas, se ergues da justiça a clava forte,
Verás que um filho teu não foge à luta...”)

E assim se deu. As famílias lutaram com bravura, da forma que puderam, lançando mão das poucas armas disponíveis. Enquanto os parcos móveis eram colocados no caminhão, com destino ao depósito público, uma das mulheres, a branca, desmaiou (ou simulou um desmaio) e foi levada pelos policiais a um posto de saúde. Voltou quase uma hora depois, ainda bastante alterada. A outra, a grávida, praguejava contra a Justiça brasileira, perguntando se “essa juíza não tem coração? não tem filhos, gente?”. Os ouvintes desconversavam, com o olhar indiferente, como se nem aí. Um dos homens, o branco, em determinado momento extravasou sua raiva arremessando um garrafão de água contra a cerca de madeira e arrancando as plantas que havia cultivado com esmero. O outro repetia seu mantra, como se a justificar-se para si mesmo da impotência: “Daqui só saio morto”.

Uma das crianças mais novas, quando não estava no colo do pai ou chorando pelos cantos, andava pra lá e pra cá, com os pezinhos descalços na água fétida, entre os coturnos dos PMs. Barrigudinha e pálida, o ranho a escorrer pelo nariz, de vez em quando brincava com sua patrolinha amarela, de plástico, repetindo os movimentos das máquinas amarelas, de aço. (“E o teu futuro espelha essa grandeza...”) As outras crianças estavam ou na escola ou em casa de parentes.

Já o rapaz deficiente olhava tudo calado. Às vezes soltava alguns grunhidos; noutras, um sorriso parvo.

Lá pelas tantas, os móveis já retirados e os tratores iniciando a demolição dos barracos, sob grossa nuvem de poeira avermelhada (que cobriu, entre outros vultos, o da cadela-sem-nome, quase atropelada por um dos pneus gigantes), chegou o pai da mulher desmaiadeira, um senhor franzino, de mais de sessenta anos. Xingando Deus e o mundo, também “prestava homenagem” à Justiça brasileira, descontrolado pela interrupção do uso dos remédios controlados, em falta no Sistema Único de Saúde, o SUS, segundo disse a filha. Aproveitando um descuido dos policiais (quatro deles haviam se retirado do local), ele acertou as costas da dona do lote com um cabo de vassoura, arrancando dela um grito de dor. Ato contínuo, o filho da mulher, o rapaz espadaúdo, quebrou outro cabo de vassoura (não se sabe de onde saíram tantos, de uma hora para a outra) na cabeça do velhote, arrancando dele um jorro de sangue. O vermelho viscoso ensopou a camisa do homem e respingou no vestido, no rosto e nos braços da filha, que correu em socorro do pai, antes de novo ataque de histerismo dela, quando novamente foi ao chão. Imediatamente chegaram mais policiais. Fecharam a rua. Três viaturas e duas motocicletas, as máquinas, mais de uma dúzia de PMs, soldados do Corpo de Bombeiros, os oficiais de justiça... O Estado mostrando suas armas.

Pena que faltou a TV...

Conduziram os brigões à delegacia mais próxima (o ferido, antes disso, foi levado a um posto de saúde, onde lhe fizeram um curativo – “Radiografia da cabeça... pra quê?!”). O delegado os convenceu a não registrarem boletim de ocorrência, o popular BO. O argumento: agressão mútua, ambos iriam responder por lesões corporais, iriam se enrolar com a Justiça, não iria dar em nada... Na verdade, iria aumentar o trabalho dele, delegado, mais preocupado com o jogo do seu time pela TV a cabo.
Ao final, os chefes das duas famílias, capitulados, concordaram que os móveis fossem levados para casas de parentes, confiantes na promessa do pagamento, pelo Estado, de três meses de aluguel de um barraco onde pudessem continuar sobrevivendo empilhados, tais quais estavam. (“Paz no futuro e glória no passado...”)

E a ordem judicial, que durou exato um dia, foi integralmente cumprida.

Quando todos já estavam se retirando – a autora, contrariada, mas vitoriosa; o caminhão-baú (da infelicidade) lotado; os tratores empoeirados; as patrulhas silenciosas; as motocicletas barulhentas; os oficiais de justiça com o dever cumprido; os curiosos saciados, embora sem a morte prometida –, ouviu-se ainda a voz seca (como a vida, seca) da mulher desmaiadeira: “Alguém viu meu pai? Alguém sabe de meu pai?” Um policial ainda se deteve e disse que o senhor, na delegacia, não aceitara carona de volta. Preferiu voltar a pé. Provavelmente andava sem rumo, perambulando pelas ruas estreitas de São Sebastião, na periferia da Capital do País. “Mas ele tá machucado, gente! Pode ter um treco!”

Que mulher exagerada... Afinal, foi só uma pancadinha de nada. O cabo de vassoura se quebrou porque devia estar podre. O pessoal do posto de saúde nem quis tirar radiografia... Traumatismo craniano?! Qual o quê! Essa gente é tão cabeça dura...

No mesmo instante, a cerca de vinte quilômetros dali, na Praça dos Três Poderes, ouviram-se os versos finais do Hino Nacional, na concorrida cerimônia de substituição da bandeira:
“Dos filhos deste solo, és mãe gentil,
Pátria amada,
Brasil!”.

Pós-escrito: Infelizmente, qualquer semelhança com fatos recentes, no Distrito Federal, não terá sido mera coincidência.

Edelson Rodrigues Nascimento
(OJAF do TJDFT – edelnasc@yahoo.com.br
www.senaoescrevodoi.blogspot.com.br)

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