"Revisão de jurisprudência do TST vai se repetir"
Quando, no fim de maio, o Tribunal Superior do Trabalho resolveu fechar para balanço, admitiu, implicitamente, o que parte da própria corte insiste em negar: que o trabalho, cada dia mais dinâmico, é uma peça que não se encaixa mais no formato hermético de uma norma construída na década de 1940, a Consolidação das Leis do Trabalho.
A Semana do TST provou isso. Uma súmula foi cancelada, três foram introduzidas e oito, reformuladas. Outras cinco orientações jurisprudenciais foram anuladas e duas, remodeladas. Uma nova sentença normativa também foi integrada à jurisprudência. Tudo isso em tempo recorde: de 16 a 20 de maio.
A proposta deu tão certo que o tribunal pode repetir a dose no segundo semestre, de acordo com o ministro Pedro Paulo Manus. “O que a gente vinha fazendo era procurar dar às súmulas uma leitura diferente daquilo que estava escrito”, explica em entrevista exclusiva concedida à ConJur em junho. “Esse movimento vai ser muito profícuo, porque vai se repetir.”
Professor da PUC-SP desde 1974, Manus, com 60 anos, mostra ter uma mente arejada. Segundo ele, o contato com os alunos “oxigena”. Juiz de carreira, demonstra, como poucos, compreender a agonia dos juízes diante de uma engessada lei trabalhista, que dá poucas opções para a execução de dívidas. Já se tornou comum os juízes utilizarem, sem cerimônia, recursos civis de persuasão, como a multa de 10% em caso de descumprimento de condenação, prevista no Código de Processo Civil — o que o TST ojeriza. Embora atento às dificuldades, o ministro prega ponderação. “A gente não pode rasgar a CLT porque está velha”, lembra, mas brinca: “Tem um jeito certo de rasgar.”
O jeito encontrado pela corte também foi fruto do fórum relâmpago feito entre os 27 ministros. Uma das propostas encaminhadas ao Legislativo traz para a CLT as últimas atualizações do processo civil. As fases de conhecimento e execução se fundem, não sendo mais necessária nova citação do devedor antes de começar a cobrá-lo. Ignorar a decisão pode sair caro: a multa é de 20% da condenação, mas o juiz pode reduzi-la dependendo de cada caso. Para pagar, no entanto, o devedor pode apelar ao crediário. Deposita 30% do valor e parcelar o restante.
A fala tranquila e o bom humor de fazer piada até com o próprio time do coração não livraram o são-paulino Manus de ser isolado no próprio tribunal. Em pleito recente, acabou não eleito para o Órgão Especial, o que ele atribui à postura que assumiu no fim do ano passado. Foi um dos pivôs do impasse que chegou ao Conselho Nacional de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal para definir a presidência do TST. Ele e outros ministros foram contra a continuidade do acordo tácito pelo qual um ministro poderia exercer três mandatos consecutivos na direção da corte. O acordo permitiu que o atual chefe do Judiciário do Trabalho, ministro João Oreste Dalazen, ocupasse as cadeiras de corregedor-geral, vice-presidente e presidente da corte seguidamente, como seus antecessores.
A Lei Orgânica da Magistratura permite apenas dois mandatos, mas o acordo dribla a norma. Se todos os demais ministros se recusarem a participar do pleito, o impedido pode exercer o mandato. No entanto, ao julgar uma briga no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em 2009, o STF acabou com a festa, ao determinar que a Lei Orgânica deve ser cumprida à risca. Em dezembro, Dalazen insistiu e acabou vencendo a eleição por 16 votos a 10. Seu concorrente, o ministro Carlos Alberto, recusou assumir a vice-presidência — com um olho na regra e outro na próxima eleição. O CNJ considerou o pleito irregular e suspendeu o resultado, mas o ministro Dias Toffoli, do STF, cassou a liminar por vícios no pedido, o que manteve a eleição.
Para Manus, o saldo acabou sendo positivo. “Isso não vai se repetir. O corregedor atual [ministroBarros Levenhagen] não vai ser vice. O Carlos Alberto, que foi corregedor, não é vice. Então, tudo indica que será o próximo presidente”, afirma.
Leia a entrevista:
ConJur — Como surgiu a ideia de rever a jurisprudência do TST?
Pedro Paulo Manus — A decisão foi formidável. O TST já havia feito uma quando o tribunal tinha uma composição menor, diferente. O presidente Dalazen percebeu que a maioria dos ministros entrou depois que a jurisprudência consolidada estava vigente. Os mais antigos também já notavam que algumas súmulas e orientações jurisprudenciais não eram adequadas. Elas foram feitas em um momento específico, para uma determinada realidade, com uma concepção ideológica e jurídica compatível. O que a gente vinha fazendo era procurar dar às súmulas uma leitura diferente daquilo que estava escrito. Esse movimento que o TST começou vai ser muito profícuo, porque vai se repetir. Talvez no segundo semestre a gente faça uma nova rodada.ConJur — De que maneira o trabalho foi feito?
Pedro Paulo Manus — Em reunião com o presidente, ele propôs criarmos dois grupos. O normativo, com 10 ministros, cuidaria da legislação e regimento interno. O outro, com 16, da jurisprudência. No curto período que se abriu para sugestões, apareceram muitas. Não era possível fazer tudo em uma semana. Só o que foi apresentado gerou três sessões do colegiado para se chegar a uma conclusão.ConJur — Quais foram as mudanças mais necessárias?
Pedro Paulo Manus — Uma delas tratou das horas extras bancárias e da complementação de aposentadoria de funcionários do Banco do Brasil. O entendimento anterior não se justificava. Se a regra é prometer uma complementação de tal maneira que a pessoa aposentada ganhe igual ao que ganhava trabalhando, e se a pessoa trabalhava oito horas habitualmente, a complementação teria que ser calculada com base nessas oito horas. Se o pagamento for feito com base em seis horas, o que se estará fazendo é entregar menos do que se prometeu.ConJur — A OJ 215 dizia que era o empregado quem deveria provar que pediu, por escrito, o vale-transporte. A lei prevê que o dever de pedir é do empregado. Por que a orientação foi cancelada?
Pedro Paulo Manus — A empresa, por acaso, dá ao empregado um comprovante de entrega de um documento, para ele fazer prova que entregou? Não. É a empresa que tem de fazer a prova de que o empregado não pediu. É uma coisa mais do que justa. Logo que eu comecei na Justiça, dizia-se o seguinte: se a empresa alega que o empregado abandonou o emprego, mas ele diz que foi mandado embora, é ele quem tem de provar. Porque o abandono de emprego é negação ao trabalho. E há um princípio de que fato negativo não se prova. Isso era moleza para as empresas. Era só esconder o cartão de ponto e proibir que o empregado entrasse na empresa. Depois de 30 dias, como ele iria provar que foi mandado embora? Ou como iria buscar duas testemunhas quando o chefe o despedisse? E a empresa ainda colocava um anúncio sem-vergonha no jornal, avisando do abandono. O cara não compra jornal nem quando trabalha, quanto mais desempregado! Então, começamos a mudar de entendimento. Abandono é uma falta que está na CLT e, portanto, precisa ser provado. Faltou? Mande alguém na casa dele, veja se está preso, se morreu, se está doente, se quebrou a perna. Com o vale-transporte é a mesma coisa.ConJur — Qual foi o raciocínio para cancelar a Orientação Jurisprudencial 156, da Seção de Dissídios Individuais I, e incorporar seu conteúdo à Súmula 327?
Pedro Paulo Manus — A prescrição é perder o direito de acionar a empresa, porque passou o tempo. Então, a cada cinco anos de contrato, você perde o direito de reclamar o que não recebeu antes. Quando termina o contrato, você tem dois anos para entrar com um processo. Contando assim, parece simples. Mas não se faz ideia do sem-número de aplicações de prescrição, principalmente em relação à complementação de aposentadoria. Imagine que um sujeito trabalha há quatro anos na empresa e recebe uma complementação. Rompido o contrato, ele vai à Justiça e diz que tem uma verba que ele recebia que não foi computada. A empresa responde que não, que aquilo foi concedido no ano em que ele saiu, e ele não reclamou nos primeiros dois anos. Ora, se o que a pessoa pede é direito novo, ela tem dois anos para reclamar. Mas se o que pede são diferenças, tem cinco anos, renováveis. Por exemplo: imaginemos que eu recebi um adicional por tempo de serviço e estou aposentado há oito anos. Então eu descubro, hoje, que na minha complementação não é contado o adicional. Eu posso reclamar, mas só receberei o equivalente aos primeiros cinco anos. O que se fez foi encontrar um critério mais justo. Já se vinha decidindo assim.ConJur — A mais discutida das súmulas ultimamente tem sido a 331, que trata da responsabilização de tomadores de serviço em caso de inadimplência de prestadoras terceirizadas. O Supremo Tribunal Federal limitou a possibilidade de responsabilização da administração pública. Como isso foi resolvido?
Pedro Paulo Manus — Na Súmula 331 havia um inciso que dizia que a administração pública é responsável. Ela faz uma licitação, contrata uma empresa de limpeza, que por sua vez não paga os salários. A pessoa que não recebe pode reclamar contra o ente público. O Supremo disse que não pode, com base na Lei de Licitações, mas o Supremo não disse que o TST está proibido de examinar isso. O que o TST fez foi inserir mais dois incisos dizendo o seguinte: a regra é que a administração não é responsável, com base na Lei de Licitações, mas quando se comprova que a administração pública não foi diligente, não cuidou de verificar se a empresa terceirizada cumpria suas obrigações trabalhistas, a administração agiu com culpa. Nesse caso, ela responde pelo débito. Em bom português, a Lei de Licitações está pensando no comportamento correto em um serviço licitado. Mas se o comportamento é incorreto, a regra da lei não se aplica.ConJur — A crítica do Supremo era que a responsabilização vinha sendo determinada de forma indiscriminada, genérica. A mudança corrige isso?
Pedro Paulo Manus — Há quem diga que, se a empresa pública checar de dois em dois meses o cumprimento das obrigações pela terceirizada, nunca poderá haver responsabilização. Mas ninguém quer responsabilizar. Se o contrato está sendo cumprido, ninguém vai reclamar. Se a empresa faz tudo direitinho, mas, na hora de pagar férias e 13º salário, deixa de honrar o compromisso, o trabalhador pode entrar com uma ação contra o tomador. Se o tomador mostrar que foi diligente e apresentar as prestações de contas, demonstrou que não agiu com culpa in vigilando.ConJur — O TST hoje é um tribunal dividido. Alguns ministros são adeptos do rigor da CLT, enquanto outros entendem que as formas mais modernas de trabalho exigem flexibilização. A revisão da jurisprudência trouxe alguma direção nesse impasse?
Pedro Paulo Manus — Nenhuma dessas súmulas tratou especificamente desse tema. Mas nós tivemos uma reunião em que o presidente Dalazen propôs fazermos uma audiência pública sobre terceirização. Todo mundo achou legal. E foi mais formidável ainda quando ele decidiu não chamar nenhum jurista, porque todos os juristas que deviam opinar sobre esse assunto já opinaram. O que ele imaginou foi quem precisa estar lá são pessoas que, direta ou indiretamente, estão ligadas a isso: jornalistas, sociólogos, empresários, sindicalistas. Isso é inteligente, nos dá um retrato da sociedade. Porque senão, fica parecendo debate acadêmico no tribunal. Um acha que pode terceirizar, outro acha que não. Um acha que determinada atividade é fim, outro que é meio. Minha opinião é que o TST, quando editou a Súmula 331, regulamentou o caso da única maneira possível, porque o legislador não fez isso. É claro, os interesses em matéria trabalhistas são completamente antagônicos, por isso é difícil.ConJur — Qual sua posição a respeito?
Pedro Paulo Manus — Pelo entendimento da súmula, serviços de vigilância e limpeza podem ser atividades-meio, desde que não haja subordinação direta. Mas por que não seria possível também no caso de o serviço coincidir com a atividade fim, se não houver subordinação? Em um hospital, há o serviço de raio-X, feito por um terceiro. A única coisa que o hospital faz é estabelecer o horário e o espaço a ser usado. Mas quem define qual será o técnico, como o serviço será feito, como será a entrega de exames, é a prestadora. Por que essa terceirização seria proibida se não há gestão do trabalho feita pelo hospital? Para mim, pode. O ponto central é quem faz o gerenciamento da atividade. Na minha turma, temos uma briga. Eu e a ministra Maria Doralice dizemos que call center, por exemplo, não é atividade fim. Recentemente, a SDI julgou, por nove votos a cinco, que é atividade fim. Mas isso é só o começo da discussão. Atividade-fim não pode por quê? Ninguém me deu uma explicação.ConJur — E qual é a explicação, na sua opinião?
Pedro Paulo Manus — Há quem entenda que seria o começo do fim do contrato de trabalho. “Se eu permitir isso, vão burlar o contrato de trabalho.” Claro, e a realidade que nós vivemos é de respeito absoluto. É claro que não. É a mesma coisa que dizer que a Convenção 87 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], que trata de liberdade sindical, não pode ser ratificada porque pulverizaria o movimento sindical. Mas com 20 mil sindicatos no país, já não está pulverizado? Designar sindicatos por categoria, por data-base, por cidade, já não é uma forma de pulverizar? Eu revogaria tudo o que a CLT diz sobre sindicatos e aplicaria a Convenção 87. No começo, iria ser uma balburdia. Os 20 mil virariam 50 mil. Mas um ano depois, se houvesse três mil sindicatos, seria muito. Mas só permaneceriam os sindicatos eficientes. O problema é que acabaria a contribuição obrigatória, e os dirigentes sindicais não estão interessados nisso. Eles são uma resistência a essa tentativa de mudança.ConJur — Também serão feitas audiências públicas em relação a outros debates?
Pedro Paulo Manus — Acho que sim. O presidente percebeu que a terceirização é um tema que todo mundo acha que precisa de um debate maior. Ele disse que elegeu o assunto como experiência inicial, mas isso não significa que amanhã não se façam outras audiências. Pode haver até o recebimento de sugestões externas, como de advogados, da OAB, dos sindicatos e da imprensa. Isso dá ao tribunal uma perspectiva mais real, mostra que temos a noção de que lidamos com coisas que acontecem na rua.ConJur — Qual foi o resultado do trabalho do grupo normativo?
Pedro Paulo Manus — Saiu um projeto, o mais importante, a meu ver, que revê capítulos da CLT sobre a execução de sentenças. O Código de Processo Civil fez uma mudança inteligente que disse que, quando se está executando a sentença de um juiz, isso não é uma nova ação, que depende de nova citação, mas sim uma fase quase que administrativa. Na Justiça do Trabalho não tem isso, porque, antigamente, só se executava na Justiça do Trabalho a sentença ou o acordo que o juiz homologava. Era uma execução só. Hoje, o patrão não cumpre a certidão da comissão de conciliação prévia, o termo de ajuste de conduta com o Ministério Público... O que esse projeto faz é dispensar a citação para executar sentença ou acordo. Faz a conta, notifica e cobra. Se não pagar no prazo fixado, tem multa de até 20%, que o juiz pode reduzir dependendo da situação da empresa. O devedor pode depositar 30% e pedir para parcelar o restante.ConJur — Ao propor algo dessa natureza, o TST não está admitindo definitivamente que a Justiça do Trabalho não pode usar o artigo 457-J do CPC, que multa em 10% quem não cumpre condenações cíveis?
Pedro Paulo Manus — O TST tem dito que não pode, porque hoje a regra é a CLT. O entendimento do TST é de que só se pode usar o CPC quando a CLT é omissa. Mas os juízes das varas dizem que a CLT é omissa sim. A CLT diz assim: começa a execução, o devedor é citado e tem cinco dias para pagar, oferecer uma garantia ou ficar quieto. Se ele pagar ou oferecer garantia, o CPC não pode ser usado. Mas se depois de citado ele não fizer nada, aí é preciso aplicar, porque a CLT é omissa na punição com relação àquele que procrastina, que é relapso. Mas os juízes das varas consideram legal a aplicação em todos os casos. O TST foi para o outro extremo, de que não pode em nenhum caso.ConJur — De onde surgiu a ideia do projeto?
Pedro Paulo Manus — Já tem juiz fazendo isso. Esse projeto foi gerado no TRT da 10ª Região, por um grupo de juízes, que usaram a experiência de outros colegas. Nenhum de nós é contra a essência do que os juízes estão fazendo, mas no TST, a gente não pode rasgar a CLT porque está velha. Tem um jeito certo de rasgar.ConJur — Um dos projetos se assemelha muito com a PEC dos Recursos proposta pelo presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso. Qual é o teor?
Pedro Paulo Manus — Trata dos recursos dirigidos ao TST, Recurso de Revista e Embargos. Se a empresa é condenada na vara, entra com um recurso no TRT. O TRT confirma a sentença e, a rigor, o processo terminou aí, tem que ir para execução. Mas há uma possibilidade de ir para o TST quando essa decisão regional conflita com o entendimento de outros tribunais ou do próprio TST, ou quando a decisão é contra a lei ou a Constituição. O que fazem os advogados muito competentes? Em 99% dos casos, entram com recurso no TST. É claro que você vai dizer que é só negar. O presidente do TRT faz isso. Mas existe um tal de Agravo de Instrumento, que é a discussão no TST do despacho do presidente do TRT que não deixou subir o recurso. Há montanhas desses agravos. No primeiro semestre, o ministro que mais julgou fui eu. A maioria desses agravos eu despacho monocraticamente. Estão fora de prazo, não têm depósito, discutem matéria que tem súmula a respeito. De cada 100 processos desses, não chega a oito o número de pedidos acolhidos. Estão lá só para ganhar tempo. Se o devedor ganhou três ou quatro anos, não interessa que ele seja condenado, porque já ganhou mais só aplicando o valor que ele deveria pagar.ConJur — Mas não incidem juros de mora sobre a condenação?
Pedro Paulo Manus — Juros desde o dia que entrou com a ação e correção monetária dentro do mês. Mas ele consegue, aplicando esse dinheiro, ganhar mais. Dependendo do caso, quando tem salário, férias e 13º salário, o camarada leva seis anos para conseguir receber. A ideia do projeto é que esses recursos para o TST não impeçam que a execução prossiga. É a PEC do ministro [Cezar] Peluso em matéria trabalhista. Se isso vingar, aposto que de cada 10 recursos existentes hoje, não sobram quatro. Vai perder a graça recorrer só para segurar a execução. E nós vamos ficar com os processos que discutem teses, interpretações, ou seja, com o que tem que ficar.ConJur — Devido ao seu conceito mais amplo de grupo econômico, a Justiça do Trabalho é a campeã em desconsiderar a personalidade jurídica das empresas para constringir bens pessoais dos sócios, inclusive bloquear valores em contas bancárias de quem nem era sócio na época do débito. Existe alguma discussão a esse respeito no TST?
Pedro Paulo Manus — Isso é uma aberração. Pontes de Miranda foi quem inventou a exceção de pré-executividade. Advogado na década de 1950 ou 1960, defendeu uma empresa enorme, que sofreu uma penhora absurda. Suponhamos que a dívida era de R$ 300 milhões, mas a ordem de penhora era de R$ 300 bilhões. A regra é que só se pode discutir na execução depois de apresentada uma garantia do valor. Mas era tanto dinheiro que não existia aquela quantia no país. Então, ele criou a exceção de pré-executividade, para mostrar ao juiz que a execução era absurda mesmo antes de depositar a garantia em juízo. Eu gosto de dar o seguinte exemplo para o aluno em classe: o devedor se chama Joaquim da Costa, titular de uma empresa individual. Seu advogado é o Manoel da Silva. Mas na hora de o servidor fazer o mandado de penhora, inverte os nomes. Coloca o advogado como devedor e penhora a sua conta bancária. O advogado precisa ir até o juiz e entrar com uma exceção de pré-executividade.ConJur — E nos casos em que o juiz já sabe que a execução é absurda ao proferir a ordem?
Pedro Paulo Manus — Tem juiz que acha que alguém tem que pagar a dívida, não importa quem seja. Não quer nem saber. O Código Civil diz que o sócio que se retira da sociedade responde pelas dívidas sociais até dois anos depois que se retirar. Julguei um caso desses no TRT. Mantive a decisão de uma juíza de primeiro grau, muito competente, que indeferiu o pedido do empregado de penhorar bens de determinado sócio. Foi desconsiderada a personalidade jurídica, e a Justiça foi para cima desse sócio, que comprovou ter saído da empresa oficialmente três anos antes do inadimplemento. O advogado trabalhista entrou com Agravo no tribunal, mas eu mantive a sentença. No julgamento, expliquei o que diz o Código Civil, mas minha revisora falou: “eu não aplico esse artigo.” “Ah, você não aplica?”, eu disse. “Mas o artigo está em vigor.” Ela respondeu: “para fins trabalhistas, não.” A terceira julgadora votou com ela. Fiquei com raiva. Quando os advogados foram embora, disse a ela: “escuta, diga aí todos os artigos que estão em vigor que você não aplica para facilitar na próxima”. Como é que um juiz diz que não aplica a lei? Ela não me deu nenhum argumento, poderia ter dito que era inconstitucional. Há um equívoco grande de alguns juízes do Trabalho, que cometem excessos. Não é quem tem crédito que precisa pagar, mas quem tem débito. Senão, vira uma selva.ConJur — Com a penhora online, o estrago é maior.
Pedro Paulo Manus — O que o BacenJud fez foi simplesmente simplificar um ato aproveitando recursos tecnológicos, assim como a citação. Antigamente a citação ia pelo correio, agora não precisa, se faz pelo Diário Oficial. Mas poder fazer a penhora online não significa autorização para ignorar as garantias de devedor. Se eu tenho uma execução, eu tenho que citá-lo. “Você tem cinco dias para pagar, caso contrário, haverá penhora online.” Mas o que alguns colegas fazem é não citar, e fazer a penhora. Aí é que está a violência. “Se o devedor for citado, foge”, é o argumento. Então, eu cometo uma violência antes que ele cometa um ato ilícito? Fica “elas por elas”.ConJur — A questão da responsabilidade objetiva em caso de acidente de trabalho é outro tema que divide o TST. Há quem entenda que é necessário que a atividade da empresa seja de risco para que esse conceito do Código Civil seja aplicado. Mas existe consenso sobre o que é atividade de risco?
Pedro Paulo Manus — Eu te pergunto o seguinte: motoboy é atividade de risco?ConJur — Em São Paulo, é.
Pedro Paulo Manus — O sujeito que trabalha como vigilante de banco exerce atividade de risco ou não?ConJur — Sim, está correndo risco o tempo todo.
Pedro Paulo Manus — É por aí.ConJur — Mas há quem defenda que só pode ser considerada atividade de risco aquela que oferece perigo não só ao trabalhador, mas a toda sociedade.
Pedro Paulo Manus — Há uma tese interessante de uma professora da USP, que se chama Giselda Hironaka. Ela é procuradora do INSS, e professora de Direito Civil. A tese de livre-docência dela é sobre responsabilidade. É como um meio-caminho entre responsabilidade objetiva e subjetiva. É uma teoria francesa, que ela propõe no sentido de que se classifique a responsabilidade entre objetiva, subjetiva e uma situação intermediária. Mas eu acho que a atividade de risco é a que oferece risco à pessoa.ConJur — Esse tema ainda gera divergência no TST?
Pedro Paulo Manus — Sim. É o mesmo caso do dano moral, que a gente precisaria aprofundar mais. O ministro Ives Gandra criou um critério segundo o qual, para que haja dano moral, é preciso que o ato seja ilícito e tenha um nexo influente em um prejuízo para a honra, para a imagem, para a vida privada ou para a intimidade. Se houver um prejuízo nessas quatro esferas, está caracterizado o dano moral. Mas é preciso provar que a pessoa foi ofendida na sua intimidade? Eu acho que não. Julgamos um caso há alguns dias, e eu fiquei até nervoso com o advogado do cliente. O trabalhador tinha um defeito físico, e era alvo de brincadeiras na empresa. O chefe nunca falou nada, não participava das brincadeiras, mas também não coibia. Esse moço foi mandado embora, entrou com uma ação e ganhou danos morais. E a advogada toca a dizer que aquilo era uma brincadeira, que ele mesmo participava. Eu disse: “é uma brincadeira engraçada porque não é com a senhora e nem comigo, mas se um de nós dois tivéssemos esse problema, sentiríamos na pele o que é ser discriminado por causa de um defeito”. Nesse caso, ele não precisa fazer prova de que ficou ofendido. A prova de que se fazia uma brincadeira de mau gosto é suficiente para demonstrar o dano moral. Mas seria interessante que discutíssemos isso para termos mais objetividade. Primeiro, para conceituar ou caracterizar, na fixação do tipo de responsabilidade, se ela é subjetiva ou objetiva. Depois, o pior: como se fixa a indenização. Porque não é só o ofendido que é parâmetro para se fixar o valor, mas a capacidade do ofensor também. O que eu quero é que o presidente da empresa, o diretor jurídico, digam que este tribunal fixou um valor absurdo. Isso fará com que o julgamento cumpra sua finalidade pedagógica. O Código Civil diz que o empregador é responsável pelos atos do empregado. Então, a empresa deveria punir o gerente, que não advertiu na primeira brincadeira. E o código é muito inteligente quando diz que a indenização se mede pela extensão do dano. É melhor do que tarifar.ConJur — A OAB pleiteia junto ao TST constantemente três coisas: sustentação oral em julgamentos de Agravo, honorários de sucumbência e a reavaliação da aplicação de multas por causa de recursos. Qual sua opinião a respeito?
Pedro Paulo Manus — No caso da sustentação em Agravo há um consenso no TST de que não se deve permitir, porque a matéria em julgamento é eminentemente técnica. No Agravo se discute exclusivamente o despacho, se ficou comprovada a divergência ou a ofensa à legislação. Ter uma sustentação do advogado não trará nenhum elemento, diferentemente do que ocorre no recurso. Quanto aos honorários, todos nós somos a favor da sucumbência na Justiça do Trabalho. A disposição da CLT de que se pode entrar na Justiça sem advogado valia na década de 1940, hoje não tem cabimento. Mas é preciso revogar uma lei, que é a Lei 5.584 [de 1970], que limita a condenação de honorários só quando há atuação de sindicato. O tribunal alterou a Súmula 219 e avançou dizendo: quando o sindicato é substituto, cabe, e quando a ação é civil na Justiça do Trabalho, também cabe. Ação Rescisória tem honorários agora. O tribunal está sinalizando que já está na hora de o Congresso revogar essa lei. Os advogados têm que virar a bateria deles contra o Congresso.ConJur — E quanto às multas por recurso protelatório?
Pedro Paulo Manus — Têm de ser aplicadas, porque o legislador não criou isso gratuitamente. Os Embargos pressupõem obscuridade, omissão ou dúvida na decisão. Mas frequentemente o advogado quer discutir a tese de novo. O advogado fica pessoalmente chateado com a multa, porque parece um demérito. Mas eu aposto que ele sabia, quando fez os Embargos, que eram protelatórios.ConJur — Recentemente, o senhor foi um dos que votou contra a possibilidade de um ministro concorrer a três mandatos consecutivos na diretoria da corte, o que ameaçou o cargo de presidente do ministro João Oreste Dalazen. Quais foram as suas justificativas?
Pedro Paulo Manus — Em 2008, foi feita uma mudança do regimento para adaptá-lo à Lei Orgânica da Magistratura. O então corregedor, ministro Dalazen, chamou todo mundo e disse que havia sido pego no contrapé, e pediu que a nova regra valesse apenas depois dele. Todo mundo concordou. Inclusive eu. Em 2009, o Supremo julgou um caso do TRF de São Paulo [o Tribunal Regional Federal da 3ª Região], e disse textualmente que não existe acordo contra a lei. Na véspera de o corregedor se candidatar a vice, eu o avisei que ele iria se meter numa fria, porque amanhã isso poderia ser impugnado no Supremo. Perto da eleição para a Presidência, eu e o ministro Ives dissemos que ele não poderia concorrer de novo. Disse a ele: “eu gostaria muito de votar em você. É um cara competente, tem uma carreira brilhante, só que não pode. Tenho medo que você se eleja e o procurador-geral vá ao Supremo e exponha o tribunal a uma situação desagradável”. Ele ficou bravo, é natural. Na sessão, repeti o que disse: “entre o que eu gostaria de fazer e o que eu devo fazer, mais uma vez vou fazer o que devo”. Aí o ministro Carlos Alberto se candidatou. Foi feita a eleição e a maioria votou no ministro Dalazen, por 16 votos a 10.ConJur — Mas todos os ministros não teriam que renunciar ao seu direito de concorrer para que ele exercesse um terceiro cargo na diretoria?
Pedro Paulo Manus — Como a maioria votou nele, mas não havia renuncia total, a situação é irregular. A Anamatra [Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho] foi para o CNJ, que, por uma decisão da corregedora e do relator, suspendeu a eleição por uma liminar. Eu fiz o que tinha que fazer. Quem gostou, deu os parabéns. Quem não gostou está de mal até hoje. O que o tribunal fez? Não me indicou para o Órgão Especial. E eu fiquei muito feliz, porque não preciso ir para o tribunal quando tem sessão do Órgão Especial. Já fui do Órgão Especial no meu tribunal [o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região] por mais de dez anos, é muito chato. É uma sessão a mais, processos administrativos para julgar. Eu não sou da maioria, mas a maioria decidiu assim e está decidido. Isso não vai se repetir. O corregedor atual não vai ser vice. O Carlos Alberto, que foi corregedor, não é vice. Então, tudo indica que seja o próximo presidente.ConJur — O objetivo de regularizar a situação foi alcançado?
Pedro Paulo Manus — Foi.Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico
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