A presença de institutos do Common Law em sistemas jurídicos de outras tradições - os writs (habes corpus)
Quando se fala em garantias e direitos fundamentais, quase que naturalmente invoca-se a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 27 de agosto de 1789, sabidamente um março, não só para o povo francês, mas para toda a humanidade. São conquistas definitivas, pode-se dizer assim, que "todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos e que as distinções sociais não podem basear-se senão na utilidade comum". De igual sorte, "o fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem; esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão".
E, por exemplo, em que consiste a liberdade, nos termos da Declaração? Consiste na permissão de poder-se fazer tudo que não cause dano a outrem, daí resultando que o exercício dos direitos naturais do homem não tenha mais limites que os que assegurem aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Tais limites não podem ser determinados, senão por lei.
"A lei é a expressão da vontade geral; todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou por seus representantes, para a sua formação; deve ser a mesma para todos, tanto para proteger como para castigar. Sendo todos os cidadãos iguais perante ela, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, postos e empregos públicos, segundo sua capacidade, e sem outras distinções que as das suas virtudes e talentos." E tantos outros direitos mais foram proclamados não só no preâmbulo como no curso dos 17 artigos da Declaração.
Muitas garantias de direito (writs), contudo, têm origem no direito anglo-saxão. E, muito embora, quase sempre se assinale o caráter mais universal da Declaração francesa, em comparação com declarações formuladas, por exemplo, na Inglaterra, o Bill of Rights (a Declaração de Direitos de 1689), o fato é que o direito inglês influenciou muitos sistemas, mormente no que diz respeito às garantias de direitos, isto é, repita-se, os writs. Vários e bem conhecidos são eles, como o writ of habeas corpus, o de mandamus, o de injunction, o de certiorari, o de prohibition e o writ quo warranto.
Por certo, o writ que mais se universalizou foi o habeas-corpus, se bem que suas origens mais remotas sempre suscitem discussões e controvérsias. Os sistemas jurídicos da família romano-germânica apontam suas raízes no velho direito romano, sob cuja égide qualquer civis (cidadão) poderia reclamar a exibição de homem livre, detido ilegalmente, por meio de ação privilegiada denominada interdito de exibir o homem livre (interdictum de libero homine exhibendo), e havia ainda o interdictum de liberis exhibendis (interdicto de exibir o livre).
Na realidade, a actio em referência não se dirigia bem ao que, mais tarde, se designaria Estado, mas ao particular que detivesse (indevidamente) homem livre. De mestre Pontes de Miranda a anotação: "Dizia o Pretor: "Exibe o homem livre que reténs como dolo mau" (Quem libero dolo malo retines (exhibeas). O "quem liberum" referia-se a qualquer homem livre, púbere ou impúbere, varão ou mulher, um ou muitos, quer esteja sujeito, ou não, a poder de outrem ("ad omnem liberum pertinent, sive pubes sit sive impubes, sive masculus sive femina, sive unus sive plures, sive sui iuris sit sive alieni"). A explicitação está em Ulpiano (L. 3, 1, D., de homine libero exhibendo, 43, 29). Cabia o interdito contra quem sem ter o pátrio poder retinha o filho, se evidente o dolo (Lei 3, 4) e passava-se o mesmo se o caso era de aluno" (in História e prática do habeas corpus, v. 1, Bookseller, 3ª ed. Franca/SP, 2007, p 174/175).
Mas, habeas corpus mesmo, tal como se compreende o instituto (isto é, como garantia e como remédio em prol da liberdade), vem do direito inglês. Mestre dos mestres Teixeira de Freitas registra, em seu clássico Vocabulário jurídico, com precisão e laconismo: "Habeas corpus, em matéria criminal, é uma instituição inglesa, que passou para o nosso direito moderno nos arts. 340 a 355 do nosso Código de Processo Criminal. (...)". A referência à legislação brasileira diz, obviamente, do Código de Processo Criminal de 1832, registre-se, de passagem.
Bem, que as raízes do instituto são inglesas, já ninguém discute. Discussão remanesce, ainda, sobre o momento histórico em que adveio o habeascorpus na velha Albion. É muito comum identificar sua fonte no capítulo 29 da Magna Carta, a "Magna Charta libertatum regis Johannem de libertatibus Angliae" (a Carta Magna das liberdades do rei João sobre a liberdade dos ingleses)", de 15 de junho de 1215.
Diz o capítulo em referência: "Nullus liber homo capiatur, vel imprisonetur, aut disseisietur, aut ultragetur, aut exuletur, aut aliquo modo destruatur de aliquo libero tenemento suo, vel libertatibus, vel liberis consuetudinibus suis, nec super eum ibimus, nec super eum in carcerem mittemus, nisi per legale iudicium parium suorum, vel per legem terrae.
Nulli vendemus, nulli negabimus, aut differemus rectum aut justitiam." Em inglês, diz- se: "No free man shall be taken, or imprisoned, or disseized, or outlawed, or exiled, or any wise destroyed; nor will we go upon him, nor send upon him, but by the lawful judgement of his peers or by the law of the land. To none will we deny or delay right or justice."
Dir-se-ia, em português: "Nenhum homem livre será capturado ou preso, ou esbulhado, ou declarado proscrito, ou exilado, ou de qualquer modo inutilizado; nem se decidirá sobre ele, nem se arremeterá contra ele, exceto por julgamento lícito de seus pares ou pela lei do país. A ninguém se denegará ou retardará direito ou justiça."
Referindo-se ao texto da Charta, disse Lord Chattan que "esse bárbaro latim dos "barões de ferro" "valia muito bem todos os clássicos", are worth all the classics" (apud Pontes de Miranda, op. cit. p. 41). Dois séculos e sete décadas mais tarde, após a Magna Charta, a Inglaterra seria governada pelos Tudors, sob regime absolutista (1485-1603). Os Tudors foram substituídos pelos Stuarts (Jaime I, 1603-1625 e Carlos I, 1625-1649) até a guerra civil (Parlamento versus exército), onde sobrelevaria a figura de Cromwell, que, vitorioso, chega a implantar a república na Inglaterra (1649), sob a forma de uma ditadura - o Protetorado, que se estenderia de 1653 a 1658.
Os Stuarts se reestaurariam na coroa (1660), pondo fim à revolução puritana (esta sob a égide, repita-se, de Lord Protector, como ficou conhecido Cromwell). Carlos II (filho de Carlos I) instala-se no trono inglês, onde ficaria de 1660 a 1685. É precisamente nesse período da história inglesa que refloresce o habeas corpus, com o célebre Habeas Corpus Act, de 1679, aprovado pelo Parlamento inglês, já restaurado, obviamente.
Por essa lei, os juízes poderiam exigir o comparecimento perante os tribunais de qualquer pessoa que estivesse presa. É dizer, o governo deveria ter o corpo da pessoa detida (significado literal da expressão latina habeas-corpus), expressando que o detido tinha que ficar à disposição do juiz. Esse o writ que, a cada vez mais aperfeiçoado, espraiou-se e universalizou-se (na medida que consagrado na maior parte dos países civilizados) e hoje não servindo apenas para garantir a liberdade de ir, vir e ficar, mas também para impedir diversos outros constrangimentos.
Autor: Coluna Direito & Justiça
A Justiça do Direito Online
Autor: Correio Braziliense
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